quinta-feira, 3 de outubro de 2013

A falsa independência do Brasil: uma leitura fanoniana


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Rio de Janeiro no início do século XX.<br />O saudosismo do "Rio Antigo" é o saudosismo da pax burguesa de uma elite colonial que insiste, até hoje, em vangloriar a estética alheia. (No caso, a francesa)
Rio de Janeiro no início do século XX.
O saudosismo do “Rio Antigo” é o saudosismo da pax burguesa deuma elite colonial que insiste, até hoje, em vangloriar a estética alheia.
(No caso, a francesa)

A Independência do Brasil não tem nada a ver com libertação nacional.
Em 7 de setembro de 1822, a burguesia brasileira estabeleceu, unilateralmente, um novo arranjo político-administrativo na forma de se relacionar com os demais povos: não mais obedeceria à burocracia administrativa de Lisboa.
E apenas isso.
Internamente, nada mudou.

O povo colonizado continuou a ser colonizado, não mais por estrangeiros, mas pela própria burguesia conterrânea, arrogante – com o poder recém-adquirido – e estúpida – por acatar e contentar-se com as condições limitadas de que dispunha.
A burguesia nacional que toma o poder no fim do regime colonial, é uma burguesia subdesenvolvida. Os quadros universitários e mercantis que constituem a fração mais esclarecida do novo Estado caracterizam-se na verdade por seu número reduzido, por sua concentração na capital, pelo tipo de suas atividades: negócios, explorações agrícolas, profissões liberais. No seio dessa burguesia nacional não se encontram nem industriais nem grupos financeiros. A burguesia nacional dos países subdesenvolvidos não se orienta para a produção, a invenção, a construção, o trabalho. Está inteiramente canalizada para as atividades de tipo intermediário. Estar no circuito, na mamata, parece ser sua vocação profunda. A burguesia nacional tem uma psicologia de homem de negócios e não de capitães de indústria. (Fanon, 1968, p. 124)
A burguesia nacional descobre para si a missão histórica de servir de intermediária. Como vemos, não se trata de uma vocação de transformar a nação, mas prosaicamente de servir de correia de transmissão a um capitalismo encurralado na dissimulação e que ostenta hoje a máscara neocolonialista. A burguesia nacional vai deleitar-se, sem complexos e com toda dignidade, no papel de procuradora da burguesia ocidental. Esse papel lucrativo, essa função de biscateiro, essa estreiteza de vistas, essa ausência de ambição simbolizam a incapacidade da burguesia nacional para desempenhar seu papel histórico de burguesia. O aspecto dinâmico e pioneiro, o aspecto inventivo e descobridor de mundos, que se nota em toda burguesia nacional está aqui lamentavelmente ausente. No espírito da burguesia nacional dos países coloniais predomina o espírito de fruição. É que no plano psicológico ela se identifica com a burguesia ocidental, da qual sugou todos os ensinamentos. Segue a burguesia ocidental em seu lado negativo e decadente sem ter transposto as primeiras etapas de exploração e invenção que são em todo o caso uma propriedade dessa burguesia ocidental. [..] Em seu aspecto decadente, a burguesia nacional será consideravelmente ajudada pelas burguesias ocidentais que se apresentam como turistas enamorados do exotismo, das caçadas, dos cassinos. A burguesia nacional organiza centros de repouso e recreação, lugares de divertimento da burguesia ocidental. Essa atividade tomará o nome de turismo e será equiparada a uma indústria nacional. Se se deseja uma prova dessa eventual transformação dos elementos da burguesia ex-colonizada em organizadores de parties para a burguesia ocidental, vale a pena evocar o que se passou na América Latina. Os cassinos de Havana, do México, as praias do Rio, as meninas brasileiras, as meninas mexicanas, as mestiças de treze anos, Acapulco, Copacabana, são estigmas dessa depravação da burguesia nacional. Porque não tem ideias, porque está encerrada em si mesma, separada do povo, minada por sua incapacidade congênita para pensar no conjunto dos problemas em função da totalidade da nação, a burguesia nacional assumirá o papel de gerente das empresas do Ocidente e praticamente converterá seu país em lupanar da Europa. (Fanon, 1968, p. 127-128)
O comportamento dos donos de terras nacionais é mais ou menos idêntico ao da burguesia das cidades. Desde a proclamação da independência os grandes agricultores exigem a nacionalização das explorações agrícolas. Mediante múltiplas barganhas chegam a surrupiar as fazendas outrora possuídas pelos colonos, reforçando desse modo sua influência sobre a região. Mas não tratam de renovar a agricultura, intensificá-la ou integrá-la numa economia realmente nacional. De fato, os proprietários de terras exigirão dos poderes públicos que centupliquem em seu benefício as facilidades e os favores ilegais que antes aproveitavam os colonos estrangeiros. A exploração dos trabalhadores agrícolas será reforçada e legitimada. Não haverá modernização da agricultura nem plano de desenvolvimento, nem iniciativa, porque as iniciativas, que implicam um mínimo de riscos, levam o pânico a esses meios e afugentam a burguesia rural hesitante, prudente, que chafurda cada vez mais nos circuitos estabelecidos pelo colonialismo. Nessas regiões, as iniciativas pertencem de fato ao governo. É o governo que as mantém, que as encoraja, que as financia. A burguesia agrícola recusa correr o menor risco. É infensa à aposta, à aventura. Não tenciona trabalhar na areia. Exige o que é sólido, rápido. Os benefícios que embolsa, enormes, tendo em conta a receita nacional, não são reinvestidos. Uma poupança de pé-de-meia domina a psicologia desses proprietários rurais. Algumas vezes, sobretudo nos anos que se seguem à independência, a burguesia não hesita em confiar aos bancos estrangeiros os benefícios extraídos do solo nacional. Em compensação, somas vultuosas são utilizadas em gastos de ostentação, em carros, em casas de campo, coisas descritas pelos economistas como características da burguesia subdesenvolvida. (Fanon, 1968, 128-129)
As estruturas sociais não foram alteradas.
As estruturas de poder não foram alteradas.
As estruturas de dominação não foram alteradas.
A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de pedra e ferro. É uma cidade iluminada, asfaltada, onde os caixotes do lixo regurgitam de sobras desconhecidas, jamais vistas, nem mesmo sondadas. A cidade do colono é uma cidade saciada [..]. (Fanon, 1968, p. 28)
A cidade do colonizado [..] é um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de quê. É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, [..] ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de negros [..]. (Fanon, 1968, p. 29)
O mundo colonial é um mundo maniqueísta. Não basta ao colono limitar fisicamente, com o auxílio de sua polícia [..], o espaço do colonizado. Como que para ilustrar o caráter autoritário da exploração colonial, o colono faz do colonizado uma espécie de quintessência do mal. A sociedade colonizada não é apenas descrita como uma sociedade sem valores. Não basta ao colono afirmar que os valores desertaram, ou melhor, jamais habitaram o mundo colonizado. O indígena é declarado impermeável à ética, ausência de valores, como também negação de valores. É, ousemos confessá-lo, o inimigo dos valores. Neste sentido, é o mal absoluto. Elemento corrosivo, que destrói tudo o que dele se aproxima, elemento deformador, que desfigura tudo o que se refere à estética ou à moral, depositário de forças maléficas, instrumento inconsciente e irrecuperável de forças cegas. (Fanon, 1968, p. 31)
A violência que fundou a colônia é a mesma que deveria ser empregada para libertá-la verdadeiramente. Não tendo sido canalizada para a libertação e transformação das estruturas coloniais, portanto, para a eliminação das condições de exploração e dominação do povo por uma elite burguesa parasita, a violência permanece, tanto como instrumento de dominação da elite tornada “independente”, ou como instrumento cego dos próprios dominados: não à toa, o Brasil, talvez a ex-colônia com o processo de descolonização mais pacífico de todas as principais ex-colônias do mundo, o país que faz da cordialidade um de seus principais valores, é também um dos países mais violentos do mundo, tanto na repressão e manutanção da ordem burguesa, quanto nas próprias relações interpessoais do seu povo.
Ao nível dos indivíduos, assiste-se a uma verdadeira negação do bom senso. Enquanto o colono ou o policial podem a qualquer momento espancar o colonizado, insultá-lo, fazê-lo ajoelhar-se, vê-se o colonizado sacar a faca ao menor gesto hostil ou agressivo de outro colonizado. Porque o último recurso do colonizado é defender sua personalidade diante de seu congenere. [..] Lançando-se impetuosamente em suas vinganças, o colonizado busca persuadir-se de que o colonialismo não existe, que tudo se passa como antes, que a história continua. Aprendemos aí em plena evidência, ao nível das coletividades, as costumeiras condutas de abstenção, como se o mergulho neste sangue fraternal permitisse não ver o obstáculo e adiar para mais tarde a opção inevitável. (Fanon, 1968, p. 41)
Em resumo,
Libertação nacional, renascimento nacional, restituição da nação ao povo, [..] quaisquer que sejam as rubricas utilizadas ou as novas fórmulas introduzidas, a descolonização é sempre um fenômeno violento. Em qualquer nível que a estudemos – encontros interindividuais, denominações novas dos clubes esportivos, composição humana das cocktail-parties, da polícia, dos conselhos administrativos, dos bancos nacionais ou privados – a descolonização é simplesmente a substituição de uma “espécie” de homens por outra “espécie” de homens. Sem transição, há substituição total, completa, absoluta. [..] Sua importância invulgar decorre do fato de que ela constitui, desde o primeiro dia, a reivindicação mínima do colonizado. Para dizer a verdade, a prova do êxito reside num panorama social transformado, de alto a baixo. (Fanon, 1968, p. 25-26)

Nota de Matutações

Recentemente, a burguesia brasileira, a reboque de um suposto discurso anti-hegemônico de cooperação Sul-Sul, tenta aproximar-se dos povos africanos, muitos dos quais fizeram a verdadeira descolonização fanoniana: pegaram em armas e expulsaram o colono.
Este pequeno detalhe deveria agigantar esses países aos olhos de qualquer brasileiro que queira se aventurar em suas terras, e diminuir o ímpeto de uma aproximação que se quer baseada em supostos laços de fraternidade de uma suposta história comum.
Muitos africanos, por mais frágeis que sejam as economias e índices de desenvolvimento humano de seus países, conhecem a farsa da descolonização brasileira, e não aceitarão facilmente a falsa cordialidade dos discursos diplomáticos da moda.
Essa burguesia, quando em África, põe-se a analisar exaustivamente a presença chinesa, e tem até a pretensão de achar, em determinado momento, que pode oferecer um modelo de cooperação melhor que o de Pequim.
Esquece-se de um pequeno detalhe: a China colaborou ativamente com os movimentos de libertação em África ocorridos em meados do século passado. Acolheu africanos em solo chinês, treinou-os, ofereceu armas e dinheiro, em suma foi solidária com a África, em palavras mas, sobretudo, em gestos concretos.
Os fortes laços que hoje existem entre os países africanos e a China não são só econômicos, mas históricos e fraternos.
Não de uma história e fraternidade à revelia de uma das partes, como é a “fraternidade” que une brasileiros à África em função do transporte forçado de escravos africanos para o Brasil, mas uma história e fraternidade livre e conscientemente buscada por ambas as partes, como é o caso de China e África.
Convenhamos: há uma “pequena” diferença aqui!!
Segundo depoimento de uma pesquisadora brasileira que esteve diversas vezes em Luanda, durante seminário sobre a cooperação brasileira em África, os brasileiros, ao contrário do que seria de esperar de um povo tão “simpático”, são vistos como pessoas que não se misturam com o povo africano: ficam isolados nas ilhas-de-fantasia dos alojamentos luxuosos (para os padrões africanos) fornecidos pelas empresas brasileiras (em Angola, leia-se Odebrecht) aos seus funcionários brasileiros. Ao contrário dos chineses que, segundo a mesma pesquisadora, moram nos mesmos lugares dos africanos.
A verdadeira história em comum com os africanos é muito mais com a China do que com o Brasil.

Referências

FANON, Frantz, Os Condenados da Terra, 1ª Edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. (Clique aqui para baixar a versão em PDF)

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